terça-feira, 20 de maio de 2008

Diagnóstico Psiquiátrico



Quem é louco e quem é normal? - Essa é uma questão que tem estimulado discussões sem fim. Muitas vezes as pessoas afirmam, num desabafo e por razões pejorativas, que fulano é louco, não exatamente como um diagnóstico médico, como fariam chamando alguém de diabético, mas no sentido extremamente depreciativo.
Essas mesmas pessoas, outras vezes, tantando mesclar a psiquiatria à alguma linha filosófica, lançam mão da retórica cansativa sobre a impossibilidade de se rotular alguém de louco, uma vez que a definição do normal é imprecisa. Esse malabarismo mental inviabiliza a primeira questão de se xingar alguém de louco, já que isso não deve existir.
Denominar alguém de louco atende desde uma vocação depreciativa, como vimos, até uma espécie de elogio, dependendo da entonação:".... acho ele tão loucão...", como uma característica socialmente fascinante. Difícil entender.
Na prática, entretanto, podemos dizer que um tratamento psiquiátrico é pensado sempre que uma manifestação psíquica incomoda o sistema sócio-cultural, a família ou faz sofrer o indivíduo. A internação psiquiátrica é solicitada proporcionalmente ao grau dos dois primeiros.
Teoricamente, entretanto, os assuntos pertinentes à loucura, aos loucos e ao diagnóstico psiquiátrico parece despertar interesses nas mais variadas áreas da atividade humana. Sobre a loucura há discursos filosóficos, antropológicos, sociológicos, policiais, forenses e até, porque não?, psiquiátricos. Afinal, nós psiquiatras também gostaríamos de participar da questão da loucura. Mas não é nosso objetivo tecer considerações sobre outros enfoques da Doença Mental além dos limites da medicina, da psiquiatria e da psicopatologia.
Popularmente ou culturalmente, o problema da Doença Mental, notadamente daquela doença mental responsável pela superlotação dos hospitais psiquiátricos, resume-se à alguém cujo comportamento difere dos demais e é capaz de provocar algum grau de ansiedade e constrangimento social. Para o diagnóstico médico, entretanto, não basta o incômodo social ou familiar.
Existe uma notória reivindicação da sociedade em geral, e da família em particular, para a reclusão e tratamento asilar das pessoas consideradas alienadas. O hospício torna-se, então, uma necessidade social para este tipo de doente mental, que nem sempre é o mesmo doente mental reconhecido pela psiquiatria. A internação é tão mais solicitada quanto maior o grau de estranheza produzido pela pessoa em seu meio (1).
Os critérios (culturais) de internação para o paciente causador de constrangimento e estranheza nem sempre tem levado em consideração o sofrimento da pessoa problemática, como acontece com as internações em outras especialidades médicas. A exclusão do nosso doente do mundo dos normais atem-se, quase exclusivamente, ao aspecto comportamental.
Aqui, na questão do diagnóstico social da loucura, a unidade de observação é o ATO do paciente. Assim sendo, grande parte das internações psiquiátricas tradicionais, para não dizer a maioria delas, acaba atendendo muito mais a socidade e/ou a família do que o paciente propriamente dito.
Na realidade, se fosse possível uma psiquiatria institucional livre e emancipada das pressões político-sociais, seriam internadas pessoas não apenas em decorrência de seus atos mas, sobretudo, em razão de seus sofrimentos e suas limitações. Isso quer dizer que, enquanto a sociedade tem uma preocupação centrada exclusivamente no ato da pessoa, a psiquiatria se preocupa também e, predominantemente, com os sentimentos.
Com freqüência, as alterações emocionais e sentimentais que tocam intimamente a pessoa, resultam em algum tipo de prejuízo nas condutas sociais e na realização pessoal. Não obstante, alguns dos mais sublimes e dolorosos sentimentos, como é o caso da angústia e da depressão, podem não provocar estranheza, preocupação ou sofrimento nos demais. Eles fazem sofrer apenas a pessoa.
Muitos desses pacientes poderiam se beneficiar, de fato, de uma internação psiquiátrica, mas acabam relegados ao descaso. Seus atos, tímidos e retraídos, só incomodam à eles próprios e não aos demais. Esses pacientes apresentam uma maneira peculiar de viver e de sentir a vida, cuja compreensão evoca uma outra unidade de observação que não o ato; trata-se da PERSONALIDADE.
Desta forma, há uma conceituação de Doença Mental, populesca e leiga, julgando a sanidade do indivíduo de acordo com seu comportamento, de acordo com sua adequação às conveniências sócio-culturais como, por exemplo, a obediência aos familiares, o sucesso no sistema de produção, a postura sexual, etc. Há, por outro lado, uma outra conceituação mais refinada e interessada particularmente no enfermo e no profissional que o assiste. Sempre houve e continuará havendo, choques contundentes entre estas duas maneiras de entendimento da Doença Mental. Neste campo de batalha sofrem, além das vítimas envolvidas, também o profissional da saúde mental. Este estudioso da psicopatologia vê seus conceitos científicos brutalmente deturpados por interesses sócio-culturais que ultrapassam a seara de sua ciência.
Não será possível um estudo da psicopatologia sem que haja um reconhecimento da existência da Doença Mental. Esta questão, embora possa parecer, não é tão absurda. Principalmente quando conhecemos alguns esdruxulismo da antipsiquiatria que negam a existência da Doença Mental. Este tipo de cegueira científica assume aspectos hilariantes quando transportadas para outras áreas da medicina; imaginem se algum dissidente resolvesse inventar a anticardiologia, com o propósito de terminar de vez com todas cardiopatias, ou a anti-gastroenterologia, a anti-reumatologia, e assim por diante.
Houve até quem tenha proposto a extinção sumária e completa de todos hospitais psiquiátricos, como se isso bastasse para terminar de vez com os doentes mentais. Seria o mesmo que propor a extinção de todas as maternidades para controlar, definitivamente, a natalidade. Ou seja, algum intelectóide excêntrico tentando matar o vírus da má utilização social da psiquiatria propondo a eutanásia desta área da ciência.
Dizer que a esquizofrenia é uma situação de crise microsocial, ou que a loucura é sempre uma viagem que liberta e enriquece a pessoa, representam tentativas frustras de negar o conceito de Doença Mental (2,3). O entusiasmo por esta tirania retórica é tanto, ao ponto de Cooper não titubear em afirmar que não há a nenhuma evidência inequívoca para apoiar a inclusão da esquizofrenia como entidade mórbida no campo da nosologia médica (4). Talvez devêssemos recuar uns quatrocentos anos e incluir esses percalços emocionais na esfera da demonologia, esquecendo de vez toda esta história de neurotransmissores e neuroreceptores.
Normalmente estas posturas discursivas, avessas à ciência, garantem uma certa notoriedade aos seus autores pelo esdruxulismo das afirmações. Garantem, essas afirmativas exóticas, um consultório e agenda cheias e, ao mesmo tempo, refletem conclusões de pessoas cuja erudição está muito mais atrelada à literatura romanesca que à prática médica da loucura. De qualquer maneira, a ficção sempre nos atraiu e não deixa de ser um exercício de pródiga imaginação.
Uma das peculiaridades da Psicopatologia, é o duplo aspecto com que os distúrbios psíquicos se apresentam: as alterações quantitativas e as alterações qualitativas. Na obstetrícia, por exemplo, observamos apenas alterações qualitativas: a mulher está grávida ou não está grávida. Também na dermatologia, a pele está íntegra ou lesada, da mesma forma na ortopedia, na reumatologia, na neurologia e assim por diante. O paciente psiquiátrico, por sua vez, pode apresentar uma alteração na qualidade do ser, ao lado de uma alteração na quantidade do fenômeno psicopatológico.
Desta forma, as alterações psicopatológicas ou os desvios da normalidade acontecem tanto do ponto de vista qualitativo como quantitativo, freqüentemente ambos e simultaneamente. A angústia e a depressão, por exemplo, são acontecimentos psíquicos experimentados por todos indivíduos da espécie humana em maior ou menor grau, ao menos em algum momento da vida (quando não sempre). Porém, em algumas situações estes sentimentos podem aparecer em quantidade que ultrapassa os limites considerados normais.
Embora todos tenhamos experimentado a angústia e a depressão, a partir de algum limite pouco preciso estas ocorrências passam a ser consideradas patológicas, tanto quanto passam a produzir sofrimento. Está aí o aspecto quantitativo. Nestes casos, a polêmica entre as várias tendências reside na delimitação dos limites quantitativos entre o normal e o patológico; trata-se de um determinado ponto além do qual o fenômeno pudesse ser considerado mórbido e patológico. Talvez fosse muito mais adequado, pensarmos no não-normal e no patológico ao invés de tentarmos delimitar o normal. Esta dificuldade aparece, também, em várias outras áreas da medicina: tentar definir um coração normal, um pulmão normal, uma função digestiva normal, uma função endócrina normal. Uma definição irrefutável sobre o normal, embora ridícula pela obviedade, seria afirmar que é o estado isento da doença e capaz de proporcionar uma felicidade e bem estar plenos.
Foram inúmeros os autores que contribuíram expressivamente para a conceituação do normal. Cito apenas três deles, cujas palavras parecem simpáticas, embora tantos outros tenham se dedicado ao tema com sabedoria:
"Normalidade é a capacidade para aprender pela experiência, de ser flexível e adaptar-se a um ambiente em transformação". L.Kubie
"Normalidade é a habilidade para se adaptar ao mundo exterior com satisfação e para dominar a tarefa de culturação". K. Menninger
"Normalidade é a capacidade de viver sem medo, culpa ou ansiedade, e de assumir a responsabilidade pelas próprias ações". O.Rank(5)
Percebemos, nas definições acima, uma preocupação em associar a normalidade à adaptação; adaptação ao mundo externo, adaptação às mudanças e ao novo. Além disso, falam também na associação da adaptação com a satisfação (felicidade e prazer) e adequação ao universo cultural, sem o qual o homem é nada. Finalmente, aparece a normalidade na ausência de sentimentos desagradáveis, como o medo, a culpa e a ansiedade, juntamente com uma qualidade valorativa, a responsabilidade.
Em relação ao elemento qualitativo dos fenômenos psíquicos, o conceito de patológico consegue uma certa concordância cultural. Um delírio, por exemplo, não é um fenômeno que acontece no psiquismo da maioria das pessoas, como acontece com a angústia ou com a depressão, portanto, sua existência não se prende à uma variação da quantidade de sintomas compreensíveis e habituais, mas sim, uma qualidade nova e um novo fenômeno psíquico. Da mesma forma a alucinação, a confusão mental, a demência, etc.
De modo a facilitar o reconhecimento da possibilidade de Doença Mental, assim como faz a medicina geral em relação às demais doenças, podemos aceitar a utilização de três critérios a serem utilizados conjuntamente e articuladamente uns com os outros:
I - o critério estatístico;II - o critério valorativo e;III - o critério intuitivo.


1 - Critério Estatístico

Pelo critério estatístico, normal seria o mais freqüente numericamente definido, aquilo que é compatível com a maioria (6). Na medicina, de um modo geral, ao se estabelecer a dosagem de glicose normal no sangue das pessoas, verificou-se a média das dosagens num grupo de indivíduos tomando-a como padrão de normalidade. Estatisticamente normal, se diz, da mesma forma como se fez com tantos outros parâmetros antropológicos de normalidades: pulsação, tensão arterial, correspondência peso-altura, duração do ciclo menstrual, acuidade visual, etc.
Evidentemente, nenhuma das cifras biológicas do estatisticamente normal tem um valor numérico absolutamente rígido e definitivo, pois, como sabemos, o ser humano não é um arranjo matemático e estatístico. Existem faixas de normalidade, ou seja, o normal fica situado entre este e aquele valor. É o caso da glicemia, por exemplo, com o normal entre 90 e 110 mg%, ou a freqüência cardíaca, com o normal entre 70 e 90 batimentos por minuto.
Dentro deste critério estatístico, devemos ter em mente o seguinte: nem sempre o habitual é normal ou ainda, nem sempre o excepcional é patológico. Portanto, as exceções à regra estatística devem ser valorizadas de forma a tornar este critério apenas relativamente válido, se considerado isoladamente. Os dentes cariados, por exemplo, embora muito freqüentes e habituais não são dentes normais. Este caso, de exceção do critério estatístico, quando trazido para a psicopatologia, pode despertar enganos grosseiros.
Há uma tendência íntima, imperceptível e enganosa, em considerarmos normais todas as reações emocionais que conseguimos compreender e que, ao mesmo tempo, possam ser habituais nos indivíduos submetidos à determinados estímulos. Porém, como vimos, não será pelo simples fato de tal reação ser muito freqüente, ou ser compreensível que, automaticamente, deva ser considerada normal. Uma mocinha, por exemplo, que "desmaia" diante do estresse de presenciar uma briga ferrenha entre seus pais, embora seja compreensível, não é normal pois, como diz os padrões médicos, o "desmaio" ou a perda de consciência jamais poderá ser considerado uma situação normal.
De outra forma, vamos considerar a gravidez gemelar como exemplo de exceção à regra estatística; embora não seja habitual a gravidez de gêmeos, jamais poderá ser considerada patológica. O mesmo raciocínio se aplica ao QI de 140 ou à alguma habilidade pródiga de memória, ambos considerados qualidades incomuns, entretanto, não poderiam ser consideradas patológicas por causa disso. No máximo podemos falar em não-normal para estes casos, mas o termo doença não se encaixa aqui.
De um modo geral, o critério estatístico deve servir para destacar da população o não-habitual, o diferente ou o não-normal e, isoladamente, isso não é suficiente para autorizar declarar este incomum como doença. O próprio sistema cultural vigente se incumbe de argüir os comportamentos que excedem os limites da suposta faixa de normalidade e os pensamentos que escapam de uma pretendida faixa de coerência e realismo. Desta forma, ou seja, estatisticamente, os comportamentos são considerados bizarros, inadequados, esquisitos, aberrantes, etc, ou os pensamentos incoerentes, sem nexo, irreais. As afirmações populares de que "... fulano não fala coisa-com-coisa..." ou que "... fulano se comporta de maneira estranha" são avaliações motivadas pelo critério estatístico.
É importante sublinhar a ausência de UM PONTO fixo e bem delimitado de normalidade para o ser humano, no que diz respeito à sua postura diante da vida. Há sim, uma FAIXA de normalidade para sua maneira de existir, da mesma forma como existe uma faixa de normalidade para tantos outros parâmetros antropológicos.
Esta tal faixa de normalidade pode ser bastante ampla e elástica, dependendo das concepções e tolerâncias do sistema sócio-cultural, porém, mesmo considerando esta flexibilidade, ela sempre terá limites. São limites além dos quais o indivíduo passa a produzir estranheza em seu ambiente. Uma pessoalevada a uma Unidade Psiquiátrica de Urgência por estar andando nua pela rua, por exemplo, poderá alegar que faz isso devido ao calor ou porque é carnaval e, habitualmente, nesta época a TV mostra publicamente tantas cenas de nudez ao ponto de, sendo ele apenas mais um carnavalesco, achar-se no direito de também desnudar-se.
Pelo critério estatísticos a sociedade percebe logo que esta pessoa difere da maioria que anda vestida, portanto, pode-se dizer que sob esta ótica ele é não-normal. A faixa de tolerância de normalidade reconhecida pelo sistema é ampla e pode autorizá-lo a andar de terno, sem paletó, sem gravata, sem camisa, de bermudas, de calção, de shorts ou até de maiô, nu porém, foge da faixa de tolerância aceitável pelo sistema sócio-cultural. Trata-se de uma questão comportamental.
Outro exemplo sugestivo da utilização do critério estatístico, agora no que diz respeito aos sentimentos, pode ser observado no caso da perda de um ente querido. Digamos que a maioria da população experimenta uma reação de luto e perda com depressão, angústia, ansiedade, etc, durante um determinado período que se tem em mente. Existem pessoas que reagem a esta perda por um período muitas vezes mais prolongado, afastando-se pois, da maioria dos outros indivíduos submetidos ao mesmo estímulo ou à mesma situação de perda. Muito embora tais sentimentos possam ser perfeitamente compreensíveis diante da situação, mesmo assim esta reação será incomum ou não-normal. Isso, do ponto de vista da intensidade e duração.
O critério estatístico em psicopatologia, tem um valor complementar e coadjuvante e deve servir apenas como um parâmetro de não-normalidade. Juntamente com esta suspeita estatística do não-normal, devemos considerar um complexo conjunto de circunstâncias associadas à não-normalidade em pauta, como por exemplo, as contínuas alterações dos padrões que regem a vida em sociedade, os hábitos sociais, o sítio temporal e social em que se insere o indivíduo e, principalmente, o contexto existencial que reveste a vivência em apreço.
É fato sabido o grande número de sintomas anteriormente considerados neuróticos e que hoje aparecem em 90% da população como parte da modernidade da vida, portanto, trata-se de uma relatividade temporal da sintomatologia neurótica. Da mesma forma, existem determinadas atitudes perfeitamente aceitas em certas culturas e consideradas aberrantes em outras. Também uma espécie de relatividade cultural da morbidade neurótica. Além destas duas variáveis do critério estatístico (a relatividade temporal e cultural), sabemos que, de acordo com determinadas exigências situacionais extremas, indivíduos psiquicamente normais podem atuar de maneira tal que, em outras circunstância mais suaves, seriam considerados francamente patológicos. É, por exemplo, o caso da antropofagia registrada em acidentes excepcionais. Mais uma relatividade dos critérios, neste caso, situacional.Assim sendo, o critério estatístico somente terá valor depois de consideradas todas as variáveis: situacionais, sócio-culturais, temporais e existenciais. Por isso, não deve ser atribuído à este sistema de ajuizamento um caráter decisório mas sim, subsidiário, o qual só terá valor se for considerado conjuntamente com os demais.


2 - Critério Valorativo

Um dos traços peculiares do ser humano talvez seja o desejo de ser diferente e destacar-se dos demais, sobressair-se da média e sair do medíocre. Considerando-se esta perspectiva da natureza humana de forma absoluta e isolada, podemos entendê-la erroneamente como uma flagrante contradição ao primeiro critério, o estatístico. Para melhor entender essa diversidade entre as pessoas a qual, apesar de desejável poderia correr o risco de ser considerada patológica (pelo critério estatístico), devemos ter em mente a idéia valorativa da doença.
Saúde é o funcionamento do indivíduo considerado ideal. Aqui a quantidade dá lugar à qualidade. Aceitando-se a idéia de que o termo DOENÇA implica sempre em prejuízo e morbidade, pelo critério valorativo podemos considerar que, em não havendo prejuízo ao indivíduo, ao seus semelhantes e ao sistema sócio-cultural, toda tentativa de destacar-se dos demais deverá ser sadia e desejável.
No critério valorativo interessa o VALOR que o sistema sócio-cultural atribui à maneira do indivíduo existir. Para não confundirmos este valor, o qual emana do sistema sócio-cultural, como sendo uma pretensa e exclusiva atribuição tirânica de fiscalização das normas, como sugere o discurso da antipsiquiatria, devemos conceber o conjunto valorativo do sistema como alguma coisa muito abrangente; os valores abrangem desde as concepções éticas, estéticas, morais, até as concepções científicas e fisiológicas que este mesmo sistema reconhece como válidos. E o próprio Sistema não deve ser considerado um bicho-papão mas algo do qual todos fazemos parte, de uma maneira ou de outra.
Enquanto o critério estatístico utiliza termos, tais como, incomum, infreqüente, desproporcional, raro, fora do comum ou diferente, no critério valorativo os adjetivos serão outros. Esses termos dizem mais respeito à qualidade que à quantidade: mórbido, nocivo, indesejável, prejudicial, degenerado, deficiente, sofrível, cruel, irracional, desadaptado e assim por diante.
A Organização Mundial de Saúde diz que o estado completo de bem estar físico, mental e social define o que é saúde, portanto, tal conceito implica num critério valorativo, já que, tanto o bem-estar quanto o mal-estar, dizem respeito à valores. A depressão, por exemplo, tendo em vista sua ocorrência universal, poderia ser considerada normal (de tão habitual), do ponto de vista estatístico. Porém, devido ao fato dela tratar-se de um afeto inegavelmente desagradável e, por causa disso sugerir uma qualidade de valor, o tanto ou o grau de sofrimento proporcionado pelo fenômeno depressivo definirá a doença.
Vejamos o exemplo de uma pessoa com o QI alto e uma outra com QI baixo. Ambos são incomuns e fogem ao normal, ambos são não-normais do ponto de vista estatístico. Este critério só nos permite ir até esta afirmação, já o critério valorativo determinará qual dos dois é o doente. A julgar em qual dos dois casos há mais sofrimento, seja do paciente ou daqueles que o rodeiam, certamente o oligofrênico ou retardado será o patológico, jamais o gênio. E, de fato, na Classificação Internacional de Doenças (CID) aparece apenas a Deficiência Mental (oligofrenia) entre seus tópicos, a genialidade não é classificada.
A prática psiquiátrica tem mostrado que a sociedade participa de forma atuante, significativamente atuante, no julgamento dos valores atrelados à existência do indivíduo. A psicopatologia, por outro lado, vê o ser humano com olhos mais científicos, mais compreensivos e mais criteriosos. O conjunto de valores sociais nem sempre tem se mostrado consoante aos valores da psicopatologia. Há avaliações viciosas na escala dos valores glorificados pela sociedade.
O sucesso, por exemplo, pode ofuscar importantes distúrbios da personalidade, tamanha a glorificação que recebe da sociedade. A obsessão pode ser confundida com a dedicação, o fanatismo com a fidelidade, a fobia com a precaução, a depressão com a responsabilidade e a paranóia com o idealismo. Por outro lado, a contestação, o protesto, a reflexão e a autenticidade também podem despertar considerações pouco elogiosas da sociedade em termos de sanidade.
Diz respeito ao critério valorativo, também, o maior ou menor comprometimento das funções psíquicas; a precariedade do contacto com a realidade, a confusão mental, os distúrbios de memória, a agressão em suas várias formas, etc. Talvez o elemento decisório para o critério valorativo é a argüição do PORQUE da atitude humana e não apenas do COMO o indivíduo é capaz desta ou daquela atitude.
Para a psicopatologia e para a psiquiatria, pouco importa se indivíduo é submetido ou revoltado diante da sociedade. Interessa, de fato, saber se esta submissão ou esta revolta é fruto de uma fixação, de um automatismo mental, de uma regressão patológica, de uma agressividade irracional ou se, pelo contrário, trata-se de uma posição criativa ou de uma consciência que constrói sua história numa orientação intencional. Em outras palavras, interessa à psicopatologia, saber se a postura do indivíduo é patológica ou meritosa (7). Como analogia didática com outras área médicas, podemos dizer que não nos interessa saber apenas se o indivíduo emagrece, mas sobretudo, se ele emagrece porque faz dieta ou porque está com câncer.


2.3 - Critério Intuitivo

Conforme diz Perestrello, a intuição é um elemento atuante de real valia, o qual, mesmo baseando-se no conhecimento parece não estar alicerçada nele (8). Na realidade, a intuição se caracteriza por uma idéia conclusiva que parece não ter passado pelos trâmites habituais do raciocínio mas que, certamente, resulta de um conjunto complexo de conhecimentos anteriormente adquiridos e mobilizados instantaneamente diante de uma solicitação específica.
Trata-se de uma inspiração patrocinada pelas experiências prévias e conhecimentos bem elaborados, os quais, nem sempre se encontram à disposição imediata da consciência, mas são imobilizados sem serem percebidos racionalmente por quem os utiliza. Em todas as áreas da atividade humana a intuição é utilizada. O pedreiro, por exemplo, numa simples inspeção tem a certeza de que a rachadura da parede é conseqüência de uma determinada infiltração de unidade, num ponto específico do alicerce. Nem sempre este pedreiro conseguiria explicar como chegou à tal conclusão mas, não obstante, há grande probabilidade de acerto.
A intuição estimulada pela observação de um paciente mobiliza uma infindável série de associações, conceitos, representações, experiências vividas e conhecimentos acumulados, sem que haja uma cansativa e morosa rememorização destes elementos. Uma idéia conclusiva ou orientadora aflora na consciência, uma suspeita de anormalidade, de morbidade ou de estranheza faz com que tal indivíduo passe a ser observado com olhos mais argutos. Apesar disso, muitas vezes temos dificuldades em explicar racionalmente, de imediato, como chegamos a esta conclusão.
Desde Galileu Galilei (1564-1642), a intuição tem sido reconhecida como método de investigação científica. No século XVII, havia ascensão da ciência racional baseada na observação experimental. De um lado colocavam-se os simpatizantes do método dedutivo, analítico, matemático e de outro lado estavam aqueles que se utilizavam do raciocínio empírico e indutivo. Existia a crença de que o mundo era governado por uma ordem racional, susceptível de descoberta pelo raciocínio dedutivo ou por laboriosa observação. Galileu teve a genialidade de combinar estas duas tendências; integrou harmoniosamente o método experimental com as presunções intuitivas hipotéticas.
Pois bem, juntando-se dentro de uma mesma atitude de raciocínio estes três critérios de avaliação, o estatístico, o valorativo e o intuitivo, podemos cogitar a possibilidade da não-normalidade e, em seguida, da morbidade psicopatológica. Seria temerário a utilização e a valorização exclusiva de qualquer um deles isoladamente, assim como também, seria temerário uma valorização absoluta e inflexível deles todos, caso não considerássemos, prioritariamente, as circunstâncias que envolvem cada caso em particular.


para referir:Ballone GJ - Diagnóstico Psiquiátrico - in. PsiqWeb, Internet, disponível em http://www.psiqweb.med.br/, revisto em 2005

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